quinta-feira, 28 de agosto de 2008

A Dança do Amor Divino



Originalmente publicado em Back to Godhead [Volta ao Supremo]

Krsna’s Dance of Divine Love

por Krsna Kanta Dasi

Uma sociedade pode ser julgada pelo tipo de educação que preconiza. Milênios atrás, nos tempos Védicos, a classe intelectual era composta por brahmanas, ou aqueles cujo estudo era dedicado ao entendimento da realidade suprema, Brahman. A classe intelectual de hoje orgulha-se de seu ensino de conhecimento secular. E mesmo que muitas universidades ofereçam cursos de religião, esses tendem a ser preconceituosos e incompletos.



Srila Prabhupada dizia que a universidade ideal deveria educar seus estudantes no conhecimento acerca da transcendência. Ele escreve: “Atualmente, muitas pessoas estão interessadas em se graduar em grandes universidades, mas educação sem consciência de Deus não é nada mais que uma expansão da influência de maya. Porque o conhecimento é roubado pela ilusão, as universidades trazem apenas impedimentos para o caminho da consciência de Deus”. (Ensinamentos do Senhor Kapila, Capítulo 12)



Prabhupada queria continuar a difusão do conhecimento da filosofia de bhakti iniciada por seus antecessores, especialmente Srila Bhaktivinoda Thakura e Srila Bhaktisiddhanta Sarasvati. Prabhupada, assim, encorajou alguns de seus discípulos a apresentarem a consciência de Krsna em universidades e a corrigirem idéias equivocadas acerca de Deus.



Recentemente, entrevistei Garuda Dasa, discípulo de Prabhupada (conhecido no meio acadêmico como Dr. Graham Schweig), doutor em religiões comparadas pela Universidade de Harvard e professor de Religiões do Mundo com foco em estudos índicos, lecionando, atualmente, na Universidade em que se formou tanto para graduandos quanto para alunos de pós-graduação. Com a formação acadêmica associada à sua visão devocional de bhakta, ele apresenta o verdadeiro Krsna para o mundo intelectual. Seu livro recém lançado, Dance of Divine Love: The Rasa Lila of Krsna from the Bhagavata Purana (publicado pela Princeton University Press), aborda um tema comumente mal compreendido por seus estudiosos, uma vez que o tom erótico da obra pode sugerir a ausência de ética ou moral. Ou seus estudantes simplesmente não foram capazes de apreciar a profundidade e riqueza teológica que é ali apresentada.



Eu perguntei a Garuda Dasa o que o levara a escrever sobre a rasa-lila, a história da dança sagrada do Senhor Krsna com as donzelas de Vraja, conhecidas como gopis (vaqueiras).



“Quando eu propunha temas para a dissertação de meu doutorado em Harvard ao meu orientador”, ele me contou, “nunca tive como plano focar-me neste tema sagrado tão comumente mal compreendido. Após um ano pensando em diversos temas possíveis, meu orientador sugeriu-me focar mesmo no significado da rasa-lila dentro da escola Vaisnava de Caitanya, uma vez que a rasa-lila recebe pouca atenção acadêmica apesar de sua fama”.



Apresentar a rasa-lila é um desafio, pois esta lila (passa-tempo) de Krsna revela a mais íntima troca de sentimentos amorosos entre Deus e Seus devotos. Além do papel de Krsna na rasa-lila poder ser visto como imoral pelos desinformados.



Na introdução de seu livro, Garuda Dasa resume os cinco capítulos do Srimad-Bhagavatam que descrevem a rasa-lila:



Em uma noite especial, a lua crescente atinge sua plenitude com um brilho resplandecente. Seus raios avermelhados iluminam toda a floresta, enquanto os lótus noturnos começam a desabrochar. A floresta, durante esses dias, apresenta-se ricamente decorada com delicados jasmins, fazendo lembrar os negros cabelos das deusas decorados com pequenas flores. Tal cenário é tão arrebatador que o Senhor Supremo, como Krsna, o eternamente jovem vaqueirinho, toca uma melodia muito cativante em Sua flauta. Tocado por fortes emoções, Krsna deseja, mais do que nunca, entregar-se ao amor.



Tão logo escutam a atraente música de Sua flauta, as donzelas de Vraja, conhecidas como Gopis, que já eram extremamente apaixonadas por Krsna, deixam, de imediato, suas casas, parentes e deveres domésticos. Elas deixam tudo para trás para desfrutarem com Seu amado na floresta enluarada. Krsna e as Gopis se encontram e fazem um concerto muito harmonioso à beira do rio Yamuna. Quando as donzelas se tornam orgulhosas devido à atenção que Krsna lhes presta, todavia, o amado Senhor desaparece da visão das jovens. As Gopis procuram por Krsna em toda a parte. Descobrindo que Ele havia fugido com uma donzela em especial, elas descobrem, em seguida, que essa também fora abandonada por Ele. Quando a escuridão termina de tomar a noite na floresta, as donzelas vaqueiras desistem de buscá-lO e ficam a cantar canções de esperança e desesperança, ansiando por Seu retorno. Krsna, então, habilmente reaparece e fala a elas sobre a natureza do amor.



A narrativa tem seu ápice com o início da dança da Rasa. As Gopis se dão as mãos, formando um grande círculo. Por um arranjo divino, Krsna dança com todas as donzelas de uma única vez, e, ainda assim, cada uma acredita ser a única a dançar com Ele. O amor supremo alcança agora sua máxima perfeição expressiva através da inebriante dança, que segue noite a dentre acompanhada das mais belas canções, no cenário divino da rasa-lila. Cansados depois de tanto dançarem, Krsna e as Gopis se refrescam no rio. Então, um tanto relutantes, as vaqueirinhas retornam para suas casas.



A rasa-lila é um acontecimento espiritual, e as trocas amorosas entre Deus, como Krsna, e aqueles Seus associados mais íntimos, constitui o mais puro amor espiritual. Para garantir que sua abordagem ao texto sagrado em questão seja autorizada, Garuda Dasa recorre exclusivamente aos trabalhos dos grandes santos dentro da sucessão discipular do Senhor Caitanya. Ele tomou por objetivo presentear os leitores com uma imagem detalhada e deslumbrante do passatempo no qual o Senhor Krsna, o reservatório de todo o prazer, encontra mais prazer em executar. A mim, suas traduções e comentários acerca do mais confidencial passatempo do Senhor Supremo são plenamente bem sucedidos no que tange conduzir o leitor ao reino onde apenas o amor puro existe.



Garuda Dasa diz: “Eu começo inteirando o leitor acerca de histórias sagradas de amor em diversas culturas e sua função de expressar o amor por Deus. A Canção de Salomão inspira seguidores das tradições místicas Judaica e Cristã no ocidente a abrirem seus corações para as dimensões de maior intimidade com Deus. De forma similar, a literatura purânica traz a rasa-lila que Srila Visvanatha Cakravarti Thakura, um filósofo Vaisnava, chama de “a mais bela jóia da coroa das atividades de Deus”.



“Dentro dessas histórias sagradas de amor”, Garuda Dasa continua, “as tradições religiosas apontam uma fase específica do amor divino para terem como modelo para a prática religiosa. Eu chamo a atenção para o fato de que as Gopis exibem todas as 8 fases de amor supremo que são exibidas parcialmente em outras histórias: despertar, ansiar, encontrar, entrar em conflito, separar, lamentar-se, reencontrar e regozijar pelo triunfo do amor. Para os Gaudiya Vaisnavas, a fase espiritual mais venerada é aquela em que se lamenta em separação, ou vipralambha-seva, que encontra espaço no Gopi Gita (A Canção das Gopis), no ato principal da rasa-lila”.



“Outro filósofo santo, Jiva Gosvami”, ainda adicionaria Garuda Dasa, “apresenta outras considerações acerca do intenso sentimento de separação das Gopis que para mim são considerações realmente próprias de uma personalidade iluminada. Ele escreve, por exemplo, que o objetivo de Krsna se separar das Gopis é unicamente para aumentar o apego delas. Os versos do Gopi Gita recebem privilegiada atenção por parte dos seguidores do Senhor Caitanya enquanto eles descrevem a viraha bhakti, ou o amor da alma com saudades de Deus e a loucura divina que caracteriza tal sentimento. Essa loucura das donzelas de Vraja, como descrita no Bhagavatam, de alguma forma se torna modelo para o Senhor de Jiva Gosvami, Sri Caitanya Mahaprabhu, cuja vida é famosa por Sua loucura extática originada de Sua devoção a Krsna”.

Tradução Poética

Garuda Dasa falou um pouco também sobre o desafio de se traduzir essa obra prima do décimo canto do Bhagavatam, que seu antigo professor de sânscrito de Harvard chamou de “o poema mais encantador jamais escrito”.

“Eu descobri que os textos originais da rasa-lila em Sânscrito não apenas possuem os ornamentos da poesia sânscrita (kavya), mas, em vários pontos, também estão em conformidade com as convenções do drama indiano clássico (natya). O primeiro verso, por exemplo, traz consigo diversos elementos dessas tradições, e eu me empenhei muito para sua tradução”:

Even the Beloved Lord,

seeing those nights

in autumn filled with

blooming jasmine flowers,

Turned his mind toward

love’s delights,

fully taking refuge in

Yogamaya’s illusive powers.

“Tento, aqui, transportar para o inglês alguns elementos da beleza poética e dramática do original enquanto mantenho uma tradução bem literal. Muitas páginas do livro foram dedicadas à apreciação do valor literário e teológico deste primeiro verso”.

A nuance de erotismo da rasa-lila tanto atraiu quanto intimidou pensadores ao longo da história. O irresistível apelo sedutor é trazido pela postura das Gopis de se doarem de forma espontânea e plenamente destituída de egoísmo a seu objeto de amor, Krsna. As Gopis são o modelo perfeito para todo aquele que está progredindo no caminho da bhakti-yoga, o caminho pelo qual se obtém Deus através do serviço amoroso. Eu pedi a Garuda Dasa para que falasse um pouco sobre como essa lila esotérica é relevante para o movimento Hare Krsna atual.

“Embora a rasa-lila represente o que há de mais elevado em termos de amor transcendental dentro da tradição Vaisnava”, ele começa, “ela é surpreendentemente relevante às praticas básicas na vida devocional de um iniciante. Por exemplo, o maha-mantra – o mundialmente famoso mantra sagrado constituído de trinta e duas sílabas Hare Krsna, Hare Krsna, Krsna Krsna, Hare Hare / Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare – é a reencenação da dança da rasa. Como eu trago em meu livro: ‘O padrão de movimento de oito pares de nomes femininos [Hare] e masculinos [Krsna e Rama] de Deus podem ser observados no mantra. [...] Quando praticantes recitam o mantra repetidas vezes, os nomes divinos formam um padrão de som e movimento que reproduzem a troca amorosa que acontece entre os dançarinos masculinos e femininos na dança da Rasa [as várias vaqueiras com os vários Krsnas multiplicados]’. Em seguida, trago que ‘o mantra começa e termina com nomes femininos, prendendo os nomes masculinos da mesma forma que as Gopis cercam Krsna em uma roda no início da dança da Rasa’.”.

“Discuto também outros temas relevantes ao movimento Hare Krsna atual, como ‘A Yoga Devocional Transcende a Morte’, ‘Limites Éticos e Amor Sem Limites’, e a distinção entre o amor mundano e o empolgante amor por Deus no capítulo chamado ‘Desvendando o Amor Devocional’.”.

“Uma das principais mensagens do livro é que orgulho e amor não se misturam. Quando as almas se tornam maculadas pelo orgulho, Deus desaparece. Quando nos colocamos, de alguma forma, superiores aos outros, quando nos comparamos aos outros e os julgamos, Deus simplesmente desaparece, assim como fez com as Gopis ao fim do primeiro capítulo da história da rasa. Essa mensagem sobre como o orgulho não compraz a Deus é novamente enfatizada no segundo capítulo, quando Krsna abandona Sua Gopi favorita, Radha, quando Ela também exibe sintomas de orgulho. Embora o amor das Gopis por Krsna seja puro, esse orgulho é exibido como uma lição para todas as almas que estão se empenhando em busca do amor puro por Deus. A mensagem é clara: Não há espaço para orgulho no reino do amor puro, desinteressado e eterno”.

Unicidade Religiosa

Minha conversa com Garuda Dasa toca de alguma forma a tensão que existe no mundo entre diferentes religiões. Os membros das diferentes tradições religiosas do mundo afastam Deus quando se deixam levar pelo orgulho e reivindicam para si a exclusividade da verdade absoluta, taxando as demais religiões de falsas. Contrariando tal visão fundamentalista, Srila Prabhupada costumava desfrutar do fato dos membros da ISKCON consistirem de pessoas vindas de todas as tradições religiosas, unidas pelo desejo comum de amar a Deus: “Nós podemos escolher nossa religião e sermos Hindus, Muçulmanos, Budistas, Cristãos, tanto faz, desde que saibamos o verdadeiro propósito da religião. O Srimad-Bhagavatam não recomenda que abandonemos nossa religião atual, mas apenas aponta o propósito da religião. Esse propósito é amor por Deus, e a religião que melhor nos ensine a como amar o Senhor Supremo é a melhor religião”. - (Elevação à Consciência de Krsna)

Encerrando seu livro, Garuda Dasa sugere aos seus leitores a mesma profunda compreensão teológica que Srila Prabhupada descreveu acima. Embora o livro apresente a rasa-lila como um acontecimento histórico no qual Krsna manifestou na Terra a troca de sentimentos amorosos transcendentais que tem com Seus devotos íntimos, aqueles fora da tradição Vaisnava poderiam, pelo menos, ver a rasa-lila como uma mensagem que simboliza o genuíno pluralismo religioso.

“O círculo divino que é aberto no começo da dança da Rasa”, Garuda Dasa escreve, “poderia ser tomado como símbolo de um genuíno pluralismo religioso, no qual os seres humanos de diferentes fés podem amar a Deus [...] harmoniosamente, e individualmente, sendo que cada alma recebe atenção individual e superlativa de Deus. [...] Portanto, é somente depois que as almas devotas se reúnem para formar um grande círculo em volta de Deus, com suas mãos dadas por amizade sincera, que Deus aceita se conectar com cada alma – ficando Deus endividado com aqueles que se unem para adorá-lO, servi-lO e amá-lO”.

Garuda Dasa adiciona: “Certamente, o mundo poderia aprender algo muito valioso da rasa-lila: a como ter aqueles amor e graça exclusivos de Deus que Judeus, Cristãos e Muçulmanos tão frequentemente anseiam, e ainda a como conseguir simultaneamente uma unicidade mundial que as tradições ocidentais muito necessitam. O mundo carece urgentemente dessa combinação inclusivista e exclusivista simultânea”.

Garuda Dasa está confiante de que essa mensagem sobre o amor, apresentada na exaltada rasa-lila, pode ser recebida pela classe intelectual e qualquer outra classe de pessoas do ocidente. Todas as almas estão convidadas a dançar com Deus na rasa-lila, basta que se qualifiquem.

Por fim, Garuda Dasa escreve: “Aqueles que já fazem parte da dança, que já desfrutam da intimidade exclusiva de Deus, têm os corações cheios de compaixão por aqueles que ainda estão de fora, e querem que todos desfrutem da dança do amor divino”. As almas santas, os grandes devotos, são aqueles que nos permitem entrarmos nas regiões mais confidenciais do amor supremo.

Acredito poder afirmar, sem reservas, que o livro Dance of Divine Love, com sua cuidadosa apresentação das confidencias trocas amorosas de Deus com Seus devotos, permitirá a acadêmicos e pessoas em geral a compreenderem o significado verdadeiro da rasa-lila, e ajudará na missão daqueles que anseiam em ver todas as almas espirituais avançando na vida devocional.



Tradução por Bhagavan dasa (DvS)

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