terça-feira, 19 de novembro de 2013

Crônica da Urda - Nossa Majestade, o Gelo



Nossa Majestade, o Gelo



O calor chegou e deve durar até Março ou Abril, e mais que em qualquer outra época do ano, nós, brasileiros, fazemos questão de um leite gelado, de um suco gelado, de uma cerveja “estupidamente” gelada, para usar o jargão de bar, e sequer nos passa pela cabeça que isso não é regra no mundo. Estava a lembrar do livro “Henfil na China”, diário de bordo do nosso grande cartunista que se foi embora antes da hora (descobri, faz pouco tempo, que a nova geração nunca ouviu falar em Henfil, e então esclareço : Henfil é irmão do Betinho, o da Campanha Contra a Fome – além de grande cartunista era hemofílico, e foi uma das primeiras vítimas da AIDS cá na Terra de Santa Cruz).

Mas eu falava do livro “Henfil na China”, onde muitas vezes ele se reporta ao hábito chinês de beber água quente, fervendo, conservada em garrafas térmicas para manter a temperatura ideal para a sede dos chineses. Cá entre nós, nada melhor que uma água fresquinha, de preferência gelada, para a nossa sede brasileira, e deverá ser um tremendo sacrifício para um de nós ser servido de água fervente na hora da sede, se algum dia formos à China. O testemunho de Henfil, digamos, é o outro lado da moeda, o oposto ao nosso gosto pelo gelado, mas é coisa que acontece a muitos milhares de quilômetros de distância, lá do outro lado do mundo, no misterioso oriente, não parece real. Continuamos achando que, tirando os chineses, todo o mundo é doidinho por quase tudo gelado, como nós, mas não é verdade.

Aqui do nosso lado, lugar onde se pode ir de ônibus, ficam os países andinos, e quero ver quem consegue uma cerveja gelada no alto dos Andes! Tá, sei que a maioria vai dizer: mas é porque lá é frio. Frio é, mas sem exageros. Mesmo numa montanha que fica a 5.300m acima do nível do mar, onde estive, na Bolívia (Chacaltaia), a gente agüenta bem com uma camiseta e um blusa grossa de lã. E estive lá nos mês de Maio, entrada do inverno. Portanto, nada de frio assustador (está-se muito próximo da linha do Equador), mas também nada de cerveja gelada. A cerveja “Paceña” é servida diretamente do engradado para a mesa do freguês, e, pasmem: apesar do frio razoável, há no ar alguma coisa que mantém os picolés fora da geladeira sem derreter. Eu não queria crer quando vi o primeiro saco de aniagem cheio de picolés vermelhos sendo conduzidos pela rua, e a primeira bandeja cheia de picolés sendo vendida num estádio. Parece não ser verdade, mas é. Fico pensando que até os picolés dos Andes não são muito gelados.

Depois do parêntesis dos picolés, que achei que deveria contar pelo inusitado da idéia, vamos dar um pulo a uma ilha do Caribe: Cuba. Cubano não gosta de gelo de jeito nenhum. Eu não conseguia, de jeito nenhum, fazer algum garçom entender o que queria dizer quando pedia “um copo com muito gelo”. Muito gelo, para eles, é uma pedrinha de nada, um mísero caquinho no fundo de um copo. Depois de uns dias, comecei a entrar atrás dos balcões para mostrar para os garçons o que queria dizer quando pedia um copo com muito gelo, e eles ficavam boquiabertos, assustados, e diziam que eu ficaria doente. Escandalizei totalmente uma amiga que fiz em Cuba, uma artesã chamada Navidad, quando lhe contei que as nossas crianças tomavam gelado desde pequenas. Ela girou o indicador do lado da cabeça, para dizer que nós éramos loucos, e explicou: gelo faz mal para os cubanos, dá-lhes dor de cabeça, deixa-os doentes. Quando penso nas doses imensas de rum puro (à temperatura ambiente) que bebem como se fosse água, não acredito muito que um pouquinho de gelo possa lhes fazer mal. É a diversificação das culturas: se bebêssemos todo aquele rum que eles bebem, sem dúvidas que seríamos nós que ficaríamos com dor de cabeça.

Bem, demos uma volta por alguns lugares, a analisar a temperatura das bebidas, e vimos que nem todo o mundo gosta de suquinho gelado e duma cerveja “estupidamente”, como nós. Dá para sobreviver nos Andes e em Cuba, mas não consigo me imaginar a tomar água fervente na China. Acho o melhor, mesmo, é ter leite na geladeira, e água, e muito gelo para o uísque e cuba-livre. Tentem se imaginar bebendo um capilé de Max Wilhelm saidinho do fogão: não há brasileiro que agüente!

(Em tempo: hoje, depois do início da Guerra do Iraque, tirei o Cuba-libre da minha lista de bebidas preferidas – não consumo mais coca-cola de jeito nenhum, nem nada que saiba ser de procedência estadunidense e que possa substituir por outra coisa. Recuso-me a ajudar a financiar a Guerra do Iraque, e há MUITA gente com quem convivo que faz a mesma coisa. – 21.11.2004)



Blumenau, 05 de Dezembro de 1995



Urda Alice Klueger

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