terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Crônica da Urda

                     CARMEM





(Para Carmen, minha querida, que partiu antes do tempo, creio que em 2010)





                                               Há que contar as coisas um pouco mais para trás.

                                               Andava eu pelo Ginásio, e meu pai resolvera ir morar na praia, onde abriu um restaurante, e os tempos, então, eram bem diferentes de agora. A moderna Armação do Itapocoroy de agora não existia; as coisas funcionavam mais próximas do século XIX, naquela época, lá, e quando a mudança ficou acertada, só havia uma alternativa: eu ficar em Blumenau, para poder continuar estudando.

                                               Fiquei morando no Colégio São José, onde já estudara o primário, das queridas freiras da Providência de Gap, que no Brasil provinham de Minas Gerais, mas que tinham ascendência francesa e que muito ensinaram a toda uma geração do meu bairro.

                                               Foi lá que conheci muitas amigas e participei de incontáveis aventuras. Que aventuras se praticavam num colégio de freiras na década de 60? Ah! Eram muitas, com certeza, e as mais emocionantes eram as de roubar comida. Nós, as adolescentes que lá vivíamos, vínhamos de famílias do Vale do Itajaí, acostumadas a cinco lautas refeições por dia, a Früstück todas as manhãs, carregados de grossas fatias de pão-de-casa com queijinho e nata, ou grossa manteiga e lingüiça, ou mesmo pirão com sonho de noiva (sonho de noiva é ovo frito com lingüiça), tínhamos um baque cultural quando chegávamos ao Colégio das queridas freiras: elas vinham de Minas Gerais e traziam outros hábitos alimentares, e no lugar do Früstück, por exemplo, recebíamos uma banana petiça madura, que absolutamente não nos satisfazia. E eu sempre abominara a banana petiça, e só comia banana verdolenga! E havia feijão todos os dias, outra coisa abominável para quem se criara comendo aipim todos os dias – o colégio era uma beleza, e a gente era feliz lá, mas quando se passava para o capítulo comida, a coisa ficava ruim.

                                               E então eu e minhas amigas passamos a viver a grande aventura de roubar comida! Na verdade, depois que os pais da gente souberam como a comida de lá era diferente, passaram a mandar sacolas e mais sacolas de coisas às quais estávamos acostumadas para suprir nossas necessidades, mas roubar comida era bom demais!

                                               Saímos dos nossos quartos tarde da noite, quando as freiras já estavam dormindo, e sabíamos cada pedacinho de tábua do corredor brilhante de encerado que rangia, e, pé ante pé, tapando as bocas para não rir alto, íamos até à cozinha do colégio ver o que havia para roubar. Lembro de coisas realmente engraçadas, como a vez em que roubamos uma compridíssima tira de salsichas, tão comprida que não conseguíamos segurá-la em duas – a parte do meio acabava arrastando no chão. Poderíamos ter cortado a tira no meio, claro, mas aí ficaria bem menos engraçado. E quando descobrimos uma caixa inteira de maçãs, naquele tempo que maçã era coisa rara, vinda da Argentina.

                                               Depois a vida seguiu, e cada uma de nós tomou seu rumo. Mais ou menos sabia onde estavam minhas amigas – algumas sempre ficaram em Blumenau , e temos grande amizade até hoje – mas uma delas como que sumiu no mundo, nunca mais tinha tido notícias dela. E agora, por causa de uma publicação em jornal, ela me achou. Telefonou-me ontem, e foi maravilhoso: entre outras coisas, relembramos como roubávamos comida no colégio. Ela se chama Carmem e mora em Biguaçu, hoje, e é uma mulher feliz! Receber a Carmem de volta foi lindo demais! Foi como receber uma flor de alegria em plena guerra!



          



                                                                       Blumenau, 19 de Março de 2003.







                                                                       Urda Alice Klueger

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