quinta-feira, 29 de maio de 2014

Outros 40 - Arnaldo Antunes

Outros 40Arnaldo Antunes

Organizado por João Bandeira


No de Paginas:
176


Uma vez, há muito tempo,
encontrei Arnaldo Antunes na Consolação com a Paulista, aqui em São Paulo. Já nos conhecíamos, mas não éramos
propriamente amigos. Apesar de um pouco
atrapalhado com a mobilete que pilotava
com certa dificuldade, me ofereceu carona.
E fomos despretensiosamente
conversando em meio ao vento, até que ele me deixou nas redondezas
do meu destino. As palavras
que trocamos, enquanto mantínhamos a atenção
simultaneamente no ritmo alternado do
equilíbrio-desequilíbrio,
permaneceram comigo. Pensei nelas
ainda muito depois daquele dia.

Numa outra vez, era eu
quem vinha de moto pela Teodoro e dei de cara com
ele, subindo a rua
a pé. Levei-o até o lugar em que ele estava
morando por uns tempos, em Perdizes. Usar capacete
já era então obrigatório e não falamos muito pelo caminho. Quando
chegamos, eu não quis entrar; alguém me esperava. Atualizamos a conversa, que foi se esticando,
ali mesmo na calçada: o
que estávamos fazendo ou planejávamos fazer e,
principalmente, quem e o quê naquele momento estava
piscando mais à nossa atenção. Lembro que, dias mais tarde, disse
à minha namorada que, sem nem de longe
se propor a isso, Arnaldo havia, novamente, melhorado
a antena do meu receptor.
Semelhante à primeira vez, aquele
nosso papo casual teve seu efeito
estendido diante de mim.
Como se indicasse uma pista na floresta de signos que
me ajudasse a encontrar o rumo de onde
eu desejava e, na época, precisava mesmo ir.

Bem, à essa altura todo mundo já
sabe que Arnaldo sabe como nos levar —
embarcados nos sons
sentidos figuras das palavras — na direção de
algum lugar em que, chegando inesperadamente, estar é bastante.
E às vezes necessário, para não sermos apenas
um cada um no meio de todos.
Faz parte disso a sua conhecida habilidade de se deslocar por
áreas de produção muito diversas e encontrar nelas
pontos de contato,
quando não amplas e insuspeitadas afinidades.
E ainda quando não é esse o caso, diante do ponto final
da diferença, apostar no convívio
(embora não costume fazer por menos para obtusos de todos os clubes).
Em contato com o mundo a partir da cidade
que ele chama de gigante liquidificador,
onde os lugares saem do lugar, em que,
como em nenhuma outra do Brasil, justamente
convivem e/ou se misturam com alta potência
macro e microculturas, investimentos de massa e de vanguarda,
aquela habilidade de Arnaldo encorpou seu
modo particular de metalinguagem.

Um bom pedaço disso tudo está à mostra
no primeiro livro a reunir os seus textos esparsos — que, a pedido dele,
organizei — chamado 40 Escritos (publicado em 2000).
A ideia para o título
me veio do fato de que nossa escolha tinha chegado
a esse número de textos, em coincidência com a idade
que ele estava completando na época. Era
como se, até que aparecesse, cada um daqueles
escritos tivesse sido gestado durante
toda a vida pregressa do autor.
E registrando a visão de Arnaldo sobre
questões diversas, em sua maioria a
partir do trabalho de outros
artistas, além do dele mesmo, era também como se,
na outra ponta do tempo, o conjunto esboçasse um
mapa do seu pensamento.
Agora são Outros 40.
Uma década passou. Fora três exceções,
os textos são posteriores aos do primeiro 40 e tendem a se
concentrar um pouco mais em música e poesia ou literatura.
Mas mantendo o horizonte largo, de olho
em muita gente: Erasmo Carlos, Pojucan, Zé
Agrippino, Paulo Fridman,
Ferrez, Augusto de Campos,
Jussara Silveira, Cézar Mendes, Eduardo Muylaert, Waly
Salomão, Planet Hemp, Sérgio Guerra,
Lourenço Mutarelli, ela, ele, você — entre vários outros.
E, desse modo, é como se
o esboço daquele mapa, para sempre incompleto, crescesse,
reiterando alguns traços, clareando áreas, detalhando partes.

Como se. Outra vez.
Teorias velhas e novas afirmam que a linguagem verbal
é metafórica por definição. Irremediavelmente diversa
daquilo que nomeia, a palavra é sempre
um ‘como se’. Nunca para de operar
transferências, estabelecendo analogias entre coisas
e coisas e ideias. Para falar disso recorre àquilo — e vice-versa.
E tradicionalmente o poeta
é aquele que possui talento e treino para melhor configurar
em palavras as qualidades do que estava ausente,
escondido ou ainda mal expresso, dando-lhe
analogicamente uma presença.
Não necessariamente no texto do poema. Eventualmente em outros
lugares. No faroeste de John Ford (‘quando a lenda supera a realidade,
publique-se a lenda’), em Xanadu, em Jaçanã,
na Alphaville de Godard (‘acontece de a realidade ser
muito complexa para a
transmissão oral; a lenda a
retransmite sob uma forma que lhe possibilita
correr mundo’) ou na Alphaville-São Paulo
— em qualquer meio em qualquer parte o tempo todo aqui agora.
Um deles, Octavio Paz, escreveu que
os poetas dos tempos
modernos têm de lidar também com o princípio
da ironia, o par necessário e oposto da analogia,
a descontinuidade da prosa invadindo a cadência da poesia, a
consciência da linguagem sobre suas próprias limitações, a
perspectiva crítica que, afastando, igualmente revela.
A aresta viva no recorte.

O que me faz lembrar do começo.
De um trabalho que Arnaldo publicou
no Kataloki, em 81: uma montagem feita com a foto
de Pelé ajeitando a bola para o chute que seria
o do seu milésimo gol. No lugar da bola, a cabeça de
Ezra Pound, mais o fragmento de uma frase deste sobre
uma das propriedades principais da literatura e/ou
da poesia: ‘nutrir de impulsos’.
Neste Outros 40, é mais uma vez a partir dessa divisa
e particularmente do seu dom de equilíbrio-desequilíbrio
entre o espantosamente óbvio e o evidentemente estranho que
Arnaldo impulsiona o pensamento.


 escreveu JOÃO BANDEIRA


Neste sábado, 31 de maio, às 17h, Arnaldo Antunes faz show gratuito em São Paulo (SP), apresentando seu novo show, "Disco", na reabertura do Museu da Imigração.
Mais informações:
http://bit.ly/aa_mi‪#‎arnaldoantunes‬


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