quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Crônica da Urda CONVERSANDO COM A MINHA MÃE – SEU PIO


                                   CONVERSANDO COM A MINHA MÃE – SEU PIO

                                   (Para seu Higino Pio e para Wanderley Caixe)

                                   Sabe, mãe? Eu tinha um amigo que se chamava Vanderley Caixe. Nunca o encontrei pessoalmente; tornamo-nos amigos através da Internet. Era um incansável lutador, vítima da última ditadura que o torturara barbaramente, advogado, poeta – tenho um livro com seus poemas na minha biblioteca. Eu acho que a mãe já tinha partido quando ele começou a publicar sistematicamente, um a cada dia, os horrores acontecidos naqueles tempos em que eu acabava de crescer, quando a ditadura militar prendeu, torturou, assassinou, sumiu com tanta gente, gente que foi carregada “num rabo de foguete”, conforme dizia a Elis, se a memória não me falha – a mãe há de lembrar da música. Depois que publicou todos os casos dos quais tinha conhecimento, ele os reuniu num blogue, e daí a pouco se foi, também partiu para outras plagas.
                                   Então, a cada dia eu lia um daqueles horrores e ficava aturdida, sem quase poder crer que tudo aquilo acontecera enquanto eu amava os Beatles e os Rolling Stones e participava de inocentes festinhas no salão paroquial da nossa igreja de Nossa Senhora da Glória, usando os vestidos bonitos que a mãe costurava para mim.
                                   Eu tinha a noção histórica daqueles acontecimentos, mas ler caso a caso, detalhe a detalhe, como o Vanderley Caixe contava, era algo horripilante, e a cada dia eu ficava mais angustiada e revoltada.
                                   Havia uma atenuante para a minha emoção, no entanto: aquelas pessoas eram de outros lugares, eram do Rio, de São Paulo, de Recife, tinham morrido no Araguaia, não eram próximas, embora algumas tenham ficado na minha vida com mais força que irmãs, como Soledad, enegrecida de tanta tortura, morta dentro de uma barrica com seu bebê morto aos pés, enquanto o Cabo Anselmo, seu algoz e pai do bebê, continua por aí fresco e fagueiro como inocente, um monstro para quem eu olho na televisão e sinto que tenho que vomitar. Mesmo tendo ficado tão próxima de Soledad, no entanto, ela continuava sendo a Soledad de Recife, fisicamente bastante distante da minha realidade.
                                   Mas teve um dia, mãe, em que eu dei com a cara na parede. Pensando que iria ler mais uma distante monstruosidade da nossa ditadura, esbarro com força na minha infância, resvalo, caio e chafurdo na minha própria experiência pessoal, e até agora não sei como se sobrevive a coisa assim: Vanderley Caixe contou a história do seu Pio.
                                   Do seu Pio a mãe se lembra, seu Higino Pio, o seu Pio da Dona Amélia, vizinhos da minha infância lá na Praia de Camboriu, que então ainda não se chamava Balneário Camboriu. Eu tenho as mais cálidas lembranças daquele tempo e do seu Pio e sua casa – comerciante, sua grande loja tinha o mais maravilhoso departamento de brinquedos que uma criança pudesse conhecer – pelo menos eu nunca vira nada tão maravilhoso, tendo em vista que aquele era o único departamento de brinquedos que eu conhecia. Recordo muito bem de uma carruagenzinha que parecia vinda diretamente dos contos de fadas e que durou algum tempo na vitrine – como eu a queria! Jamais diria tal coisa para a mãe ou o pai, no entanto – um brinquedo assim era coisa para alguma princesa, e não para uma criança comum como eu. Mas tenho lá a lembrança, assim como lembro dos bolinhos de frigideira que comia na cozinha da Dona Amélia.
                                    O seu Pio era um comerciante forte da Praia de Camboriu; construiu um dos primeiros edifícios de lá, a classificação que lhe cabia era de capitalista. Tinha tal importância que se elegeu primeiro prefeito, quando a praia virou município. E eu lembro, ah! mãe, como eu lembro, a mãe e o pai cochichando em sussurros:
                                   - Mataram o Pio!
                                   Era o tempo do medo e vocês estavam acostumados a ele, egressos que eram dos tempos da Segunda Guerra Mundial, quando se viveu com medo até de falar, nesta minha região onde a língua não era exatamente a portuguesa. Então cochichavam, mas meu ouvido fino ouviu aquilo e guardou a lembrança, e por décadas não pensei mais – até que dou de cara com a denúncia feita pelo Vanderley Caixe!
                                   A ditadura me afetara, sim, chegara diretamente a mim, à minha emoção, à lembrança da cozinha da Dona Amélia e da carruagenzinha na vitrine daquela loja tão linda, enfiara um espeto enferrujado no meu coração e ressuscitara os cochichos da mãe e do pai dizendo em sussurros:
                                   - Mataram o Pio!
                                   Sim, mãe, mataram o Pio, o seu Higino Pio da mais linda loja de brinquedos do mundo, mataram ele mesmo ele sendo o protótipo do capitalista – como? Como? Não estava a ditadura a perseguir os comunistas?
                                   Ah! Mãe, quantas mentiras nos contaram a vida inteira! Por sorte, eu tinha na lembrança o cochicho de vocês, e vocês sabiam mais do que diziam, porque sabiam que o seu Pio tinha sido matado.
                                   Como tirar esta mágoa de mim agora, seu Pio? Como poder deglutir esta sensação de infância profanada?
                                   Por sorte, eu tive na minha vida um amigo chamado Vanderley Caixe, mãe. Por sorte eu não parei no tempo e estive sempre querendo saber mais. Por sorte não me mantive na ignorância onde poderia estar agora.

                                   Blumenau, 25 de Setembro de 2014.

                                   Urda Alice Klueger
                                   Escritora, historiadora e doutora em Geografia.

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